Numa terra onde tudo convidava a viver, com areias reluzentes e um mar insanamente azul, Albert Camus (lê-se Albert Câmi) aprendeu bem cedo que a miséria limitava o paraíso argeliano a um lugar sem muitas oportunidades. Nascido em uma pobre família do interior da Argélia (de descendência francesa), foi graças a uma bolsa de estudos que Camus conseguiu entrar no liceu da capital. Sob o sol ardente, batendo sem cessar sobre o bairro Belcourt, o então garoto estudava o dobro de seus colegas, chegando à universidade em 1931. Quatro anos mais tarde, sua vida literária começa a engrenar. Fundou o Teatro do Trabalho e o jornal Alger Republicaine.
Em 1940, já em Paris como jornalista, a atmosfera da 2ª Guerra Mundial vinha tornando difícil a vida na França, de modo que Camus voltou para a Argélia, trazendo consigo o manuscrito de um romance. Era O Estrangeiro, livro que faria seu autor se transformar numa das figuras mais nobres da literatura francesa.
Escrito em uma época sombria de guerra, O Estrangeiro narra com incrível capacidade o que de mais trágico existe na condição humana: o absurdo, o limite entre aspirações e realidade.
Mersault, que reside em Argel, tem sua vida modificada bruscamente ao matar um árabe. Não pelos motivos óbvios.
A história se inicia com Mersault indo ao enterro de sua mãe. Um dia depois inicia um caso amoroso com Marie e se distrai alegremente no cinema com um filme de Fernandel.
Tem dois vizinhos de prédio. Um deles é Salamano, velho ranzinza cujo maior sentido na vida é castigar seu cão. O outro é Raymond, agiota de personalidade duvidosa que, no fim, é o grande responsável pelas desgraças de Mersault.
Em um dia quente Raymond, Mersault e Marie vão à praia. E é nesse cenário que o protagonista depara-se com o árabe inimigo de Raymond. O árabe puxa uma navalha e Mersault puxa o gatilho, disparando cinco vezes. Logo em seguida é acusado de assassinato e vai preso. Durante o processo muitos pormenores de sua vida vão adquirindo relevância extrema, como o fato de ter fumado no enterro de sua mãe. É tachado como insensível, um homem sem alma, considerado um forasteiro quanto aos ditames da sociedade. Seu advogado pouco pode fazer e Mersault recebe sentença de morte.
O protagonista da obra, Mersault, vive em permanente indiferença a todos os valores morais. É o homem que não aceita as regras do jogo. Mas também está disposto a ir até o fim defendendo a única verdade na qual acredita. Mersault nasceu para desmascarar o cinismo e o vazio por trás da sociedade como um todo e do indivíduo como elemento principal. O homem é um nada, abandona aqueles que ama e também é abandonado. O homem é impotente perante as desgraças que presencia, e por isso mesmo finge não as ver. O Estrangeiro está ali justamente para dissecar aquilo que está errado e nos abrir os olhos para a estupidez de nossa falsas regras morais.
Quanto mais o conhecemos menos temos certeza se Mersault é o herói ou anti-heroi dessa história, cujo desenrolar nos joga de um lado para o outro, tal como ventríloquos de Camus, sem saber direito mais o que é certo e o que não é. Pois nossas crenças mais sagradas serão de repente questionadas, à medida que avançamos sobre o psicológico de Mersault. Não estaremos prontos para isso. Cada frase dele nos soará como absurda, desprovida de qualquer contato com a razão ou com o sentimento. Porém, quanto mais se indaga sobre sua sanidade, mais se fascina com a idéia por ele pregada. Tudo é permitido, pois todos nós morreremos e os valores todos se desmoronarão. Para Mersault, não é preciso justificar nada, por isso ele não explica, apenas descreve. Seu silêncio reforça o mistério que seu ser emana. Se ele não tem o que dizer, simplesmente não se obriga a falar. Por isso é desesperadamente verdadeiro, sem jamais pisar no território das mentiras.
A revolta do personagem é uma revolta que apaixona. Seu espírito rebelde se iguala a uma espada, com a qual ele defende como um guerreiro os poucos certezas dessa sua vida pelas quais ainda vale à pena lutar ou morrer.
Na obra de Camus todos os personagens secundários merecem um olhar mais atento. Podemos perceber que nenhum deles está alí por acaso. Cada um contribui com um lampejo de lucidez. Cada um deles é construído para conduzir Mersault a trilhas incertas.
No centro do caos instalado, sem começo nem fim, Camus não deixa de mencionar os cenários insólitos daquela capital encravada entre o mar e areia. A paisagem é peça fundamental da narrativa, colada a seu corpo ela dramatiza ainda mais o enredo. A sequência dos dias melancolicamente cintilantes de luz e calor, os fins de tarde cheios de uma magia indescritível, as noites desiludidas. Tudo isso faz parte uma beleza que salta para fora do livro. A técnica da descrição de Camus é tão poderosa que é quase como se pudéssemos sentir os aromas vindos do porto de Argel.
Não há definitivamente como escapar da sedução desse estrangeiro, a quem, ao final de páginas e páginas, ainda não temos a plena certeza de compreender. Mas a graça reside aí. Justamente porque não conseguimos decifrá-lo é porque nunca mais poderemos esquecê-lo.
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